Astronave e Beleza Rara

Astronave e Beleza Rara

Os últimos pingos de chuva descortinaram o restante do verde que a poeira do asfalto escondia.

Achei que pela primeira vez podia respirar direito.

A primeira manhã de chuva. A gente não esquece dela, pelo menos não até que a próxima venha superar nossa lembrança mais antiga.

Agora eu queria começar a história e tenho que pedir licença aos personagens que ficam por sobre o meu ombro tentando inutilmente imaginar o que registrarei na tela em branco. São tolos.

Como numa peça, meus atores prediletos novamente subirão ao palco e eu farei do palco um pouco do que eu quero.

Não vou constrangi – los com elogios, por isso os disfarço como personagens novos, vejam só personagens velhos, disfarçados de personagens novos… uma nova formula da juventude…

Mas antes preciso ambientar você. Minhas histórias começam com cenas de ação.

Sim, não todas, mas essa, veementemente me pede que seja uma cena de ação, onde o espectador fique perdido, então, que posso eu fazer se as palavras assim o desejam?

Esta é uma história que acontece na penúltima década do século XX, quando as luzes do novo milênio pairam perigosamente sobre a cabeça das pessoas, o cometa de Halley faz sua aparição e eu escutava certas coisas no rádio.

A rua está deserta a essa hora, as bandeiras foram arrancadas e os sons de alegria agora ficaram restritos a poucos bares que permanecem abertos alguns quarteirões a frente. É fim de um domingo particularmente triste.

O clima está úmido ainda, e Astronave não parece se importar com isso ali, sentado na calçada.

Um filete de enxurrada percorre seus pés numa estranha meditação. Se pensava sobre a vida nunca ficaremos sabendo.

O som da voz de Beleza Rara o tira de sua concentração, bem a tempo de se desviar.

Apenas do primeiro chinelo.

O segundo o acerta em cheio o meio da testa.

Ato Um  – Quando os Amigos dizem Adeus

Beleza Rara – Você me fez perder tempo.

Astronave (recolhendo um chinelo que o havia acertado na cabeça) – Tempo. Porque neste país todos acham que perdem tempo?

Beleza Rara – Saí dessa! Fiquei a manhã toda esperando em frente a televisão os gritos e a alegria e o que eu ganho com isso? Uma rua vazia e uma tarde úmida.

Astronave – Se tivesse certeza que iria poder comemorar que comemorasse antes. Como eu fiz.

Beleza Rara – Você comemorou antes?

Astronave: Claro. Assim não preciso me preocupar em “perder tempo” . Acho mais produtivo me preocupar em achar tempo. Isso sim é digno de se preocupar. Já percebeu que todos perdem tempo e ninguém parece especializado em achar tempo?

Beleza Rara (Encarando uma câmera imaginária) : Isso está parecendo um drama.

Astronave: Viu! Eu aqui preocupado em fazer uma comédia e você encontrando dramas. Estamos dessintonizados.

Beleza rara encontrou um espaço ao lado de Astronave e ficou olhando o filete de água correr.

Astronave: Ainda vai viajar amanhã?

Beleza Rara: Vou. Porque ninguém me perguntou se eu quero ir?

Astronave: Porque normalmente nossa opinião não vale o suficiente para se perguntar.

Beleza Rara: Isso eu não posso entender…

Astronave: É como tentar comprar algo mais caro do que temos. Não faz sentido.

Beleza Rara: Sua lógica é estranha.

Astronave: Toda lógica é estranha.

Um garoto passou e arrancou o restante das bandeiras. 

O império das bandeiras estava no final daquela manhã e a tardezinha ensaiava uma garoa e um sol.

Era um encontro estranho para uma despedida.

Beleza Rara e Astronave montaram sua empresa naquela tarde sentados em uma calçada.

Interlúdio I

Beleza Rara olhou-se no espelho e manteve um pequeno dragão de metal no alto do espelho para compor com sua imagem.

Não gostava de repteis. (Bem, ninguém ainda havia provado para ela que aquilo ali não era um réptil, então na dúvida ela deixava a imagem do dragão alado ali. Como uma lembrança de um tempo que estava passando).

Já haviam se passado cinco anos desde a tarde com Astronave.

Por isso ela ficava olhando o dragão. Era uma espécie de lembrança.

Capitulo II

Astronave e Beleza Rara

História de dois Atores

(Em um palco escuro, apenas uma luz incide no centro. Sons mecânicos são ouvidos por todo o teatro)

(Subitamente uma pessoa passa correndo em frente ao feixe de luz. Podemos perceber que é uma mulher)

Uma trilha de violino entristecida começa a tocar, vagarosamente, de forma levemente melancólica)

(A pessoa passa a correr agora acompanhada por mais duas ou três pessoas)

Param subitamente quando o palco é iluminado a esquerda. Um homem está em pé. Tem um guarda chuva na mão.)

No centro uma mulher, completamente encharcada para na luz.

Outro foco de luz é colocado de forma a destacar uma cadeira azul.

Astronave: Quando eu a encontrei chovia. É preciso que você que nos ouve saiba disso.

Beleza: Ele tinha um guarda chuva e …bem, não pensem que eu era uma interesseira.

Astronave. Ela me acompanhou por um quarteirão.

Beleza: Apenas um quarteirão.

Astronave: Pedimos desculpas a vocês, pois começamos nossa história pelo final, porque não nos conhecemos antes desse dia, apesar que agora vejo, até isso mesmo pode não ser inteiramente verdade.

Beleza: Sim, porque essa é uma era de verdades digitais, frágeis e delicadas, facilmente delatáveis.

Astronave: Facilmente

As luzes devem se apagar e um som de chuva deve começar de forma intermitente. Durará cerca de trinta segundos. Dois atores aparecerão no centro do palco e caminharão em direção a cadeira azul que continua no mesmo lugar. Eles estão vestidos de negro.

Soldado Um: Quer dizer que ouviram duas pessoas falarem sobre liberdade?

Soldado dois: Não. Isso ocorre o tempo todo. As pessoas sempre falam de liberdade. Devem todas serem masoquistas. Estamos falando em um delito mais grave.

Soldado um.(sentando na cadeira) MAIS GRAVE? Não consigo imaginar algo mais grave que isso.

Soldado dois: Atos explícitos garoto. Sei que não lhe contaram isso na escola. São todos cercados de besteiras como, isso não é possível, não vai dar chefe e outras idiotices assim…

Soldado Um : Tem certeza que os dois não se conheciam?

Soldado Dois.: Estamos investigando, mas acreditamos que não. Eles, os livre não tem organização. Iria contra sua própria filosofia de vida.

Soldado Um: E quando vão interrogá-los?

Soldado Dois : Breve.

Cena I

Uma Festa, um Manjar e apenas um copo para todos

Cenário, o fundo é iluminado por luzes psicodélicas. Sombras caminham, enquanto algumas param e aparentemente bebem algo.

Uma mesa pequena é iluminada e uma pessoa segue em direção a ela. Outra pessoa segue logo após, enquanto a pessoa aparentemente fica parada.

Pessoa 1: Esse produto está consumível?

Pessoa 2: Está.

Pessoa 1: Então posso me servir.

Pessoa 2: Você é livre?

Pessoa 1: Sou

Pessoa 2: Então porque pergunta? Sirva-se.

A pessoa se afasta e a outra fica observando o manjar.

Homem: Resolvi comprar uma casa nova não gostaria de olha-la?

Mulher: Não. Não gostaria.

O som de uma queda se escuta e subitamente a festa se vê cercada por policiais.

O som de alguém descendo uma escada é ouvido. 

Subitamente todas as armas são engatilhadas apontando para um homem magro, mirrado, com um riso meio histérico no rosto.

Hermes: Ela voou!

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Capitulo Um – (no qual você percebe que a peça teatral se tornou um estranho romance)

Lei da Gravidade

Oficial: Diga seu nome.

Hermes: Hermes.

Oficial: Igual aquele que tinha asas nos pés?

Houve uma risada geral, apenas o oficial continuou impassível.

Oficial: Que tal tomar mais um gole de água e me contar do começo.

Hermes: É que a história toda é meio sem pé nem cabeça. Nem sei por onde começar.

Oficial: Vamos fazer como no teatro: Eu dou a deixa e você segue:

….- Era uma vez…

Hermes fez tal qual carro velho: engasgou, tossiu, mas por fim começou a subir a ladeira.

Meu pai diria que subir  ladeira é relativamente fácil. Difícil era controlar a descida.

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Hermes

Seis e meia ela ainda estava viva. Eu também.

Oficial: (indeciso)

Bem, você ainda me parece vivo…

Hermes

Aparências senhor. É possível que sem elas nada aconteceria. Nem mesmo o seu reflexo naquele espelho.

(Atrás dele apenas uma parede vazia.)

Oficial: – Que espelho?

O dar de ombros de Hermes concluiu sua explanação.

Hermes: Bem o fato é que só tenho quinze minutos para contar. Não é um tempo longo, nem possui muitos detalhes.

Oficial: Ainda assim nos interessa. Não fique preocupado. Não achamos que seja você o assassino.

Hermes: Nem poderiam. Eu estava morto.

Havia certa gravidade em sua fala uma gravidade que impunha respeito. Ninguém riu dessa vez.

Hermes: Helena tinha o hábito de conversar com pombos. Ela se inclinava na janela e ficava, gorgolejando, ou falando a língua das pessoas.

Oficial: Helena… Você a conhecia?

Hermes: Não. Ninguém conhecia Helena além dela mesma.

Oficial: Isso me soa como ideologia.

Hermes: Não meu senhor. A verdade sempre soa como ideologia. Se for verdadeira soará assim.

Alguém piscou e disse que ele deveria continuar. Estavam gravando.

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Hermes: Contratamos uma agência. Ela contratou. Helena tinha dessas coisas.

Oficial: Você vivia com Helena?

Hermes: Pior meu senhor. Vivia e agora morro sem Helena. Quer sina pior?

Oficial: Voltemos a agência. Do que se tratava?

Hermes: Era uma agência de tempo senhor. Pessoas encarregadas de encontrar o tempo perdido.

Oficial: Tempo perdido? Como pode alguém ser especializado em encontrar tempo perdido?

Hermes: Eu perguntei o mesmo para Helena e ela continuou a falar com os pombos. Já disse que ela tinha uma queda pelos pombos?

Oficial: Claro. 

Hermes: Prosseguindo, ela encontrou um anúncio deles escrito num livro de poesia na biblioteca municipal.

Oficial: Se lembra qual livro?

Hermes: Não…mas a capa era verde…

Oficial: Isso não ajuda. Eles não tinham um cartão ou coisa parecida?

Hermes: Para quê? Eles não perdem tempo com isso. São profissionais.

Oficial: E quem são eles?

Hermes: São duas pessoas. Nunca vi os dois juntos. Para falar a verdade eu nunca tive certeza que os dois sequer se conheciam. Tinham métodos pouco ortodoxos de pesquisar. Nunca apareciam juntos. 

Oficial: Acho que estamos na pista dos nossos suspeitos agora. Diga o que eles faziam exatamente.

Hermes: Bem, ele ouvia músicas com Helena. Ela mostrava figuras.

Oficial:Figuras de arte?

Hermes: Não. Pequenos recortes de revistas de moda, de noticiários. Era uma mulher e tanto. Havia sido atriz.

Oficial:Ela lhe disse isso?

Hermes: Não.

Oficial: Então como sabe?

Hermes: Não sei. Porque tenho que saber tudo e você nada? Não estou gostando dessa conversa.

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CENA II –  O Homem do Guarda-Chuva

O sol estava a pino.

Astronave se encontrava do lado do Homem-Que-Vendia-Coisas

    • Um guarda-chuva por favor.

    • Mas não está chovendo.(Olhando desconfiado para o sol a pino)

    • Ontem estava.

    • Acha que vai chover? (desconfiado)

    • Por que?

    • Se for chover tenho que lhe vender mais caro.

    • Bem, aí eu esperaria a chuva começar. Ou talvez eu compre em algum outro lugar…

    • Não, o que é isso amigo… vendo pela metade do preço. Afinal o Sr. Não gostaria de perder tempo quando começasse a chover não é mesmo?

    • Eu nunca perco tempo.

O Homem Que Vendia Coisas olhou para ele e sorriu.

    • Um homem prevenido…

    • Não. Profissional mesmo.

Pagou o guarda chuva e se pôs a andar, utilizando-o como bengala.

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Beleza Rara tirara o dragão do espelho. Não era mesmo tão bonito. Tinha colocado agora uma estrela. Estrelas são bonitas.

Ela ia sair, seu vestido era azul e não combinaria com um dragão. Somente combinaria com estrelas.

Se ela encontrasse Astronave (fato pelo qual ela tinha colocado o vestido) ele provavelmente diria que ela parecia uma estrela-cadente. 

Ele sempre dizia isso. Porque era da sua natureza brilho rápido e reluzente. Se ele voltasse um dia a viver no mundo, então seria como uma caixa de fogos de artifício, e seu maior sonho seria ser queimado no dia de Ano Novo.

Beleza Rara sorria com essa idéia quando atravessou a porta que dava para a rua.

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Interlúdio II

    • O caso dos livres senhor…

    • Não me venha com essa história agora? Não vê que eu estou ocupado…

    • Com o caso da mulher que voou?

    • Não com o relatório do legista.

    • O legista examinou o corpo e aí.

    • Descobriu que ele morreu na queda.

    • Ela, o senhor quer dizer…

    • Ele.

    • Ele quem senhor?

    • Nosso depoente.

    • Mas ele estava bem e vivo. Teve o ataque cardíaco na porta quando ia embora.

    • Não é o que o relatório diz. Segundo o que me disseram, ele morreu vinte minutos antes de nos dar o depoimento.

O soldado não sabia o que pensar.

    • Isso arrepia minha nuca senhor…

    • Deve ser o vento. Estão instalando um espelho com câmera na sala de interrogatório. Depois desse relatório….

    • Acha que  dirão o senhor ficou maluco?

    • Eu e que estou achando!

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Voltamos a cena inicial

Astronave e Beleza Rara se juntam debaixo de um guarda chuva.

    • Acho que eles não acreditam em nós.

    • Claro que não. Eu não acreditaria.

    • Mas é a verdade.

    • Por isso mesmo. Todo mundo sabe que todo mundo só conta mentiras.

    • Será que eles realmente acreditaram que eu não conhecia você?

    • Sim. Porque isso é uma mentira.

Beleza Rara olhou nos olhos de Astronave.

    • Ei, mas isso é verdade.

    • Não, não é. Nos dias de hoje não podemos dizer que conhecemos ninguém. Somos livres lembra?

    • Mas…mas… eu não quero ser livre…

    • Não adianta mais. Somos sócios, mas somos livres.

    • Por falar em sociedade, porque você atendeu aquele sujeitinho? O amigo de Helena?

    • Ela pagou por ele.

    • Mas pagou pelo quê?

    • Não queria que as autoridades ficassem perdendo tempo procurando explicações de porque ela pulara na festa.

    • Não sei… isso me pareceu anti-ético e agora eles sabem que nós existimos.

    • Não sabem não.

Beleza Rara olhou novamente para ele.

    • Como não?

    • As autoridades são ainda piores do que os simplórios. Sempre que vêem ou ouvem uma verdade tem certeza que é mentira. Quantas vezes trabalhamos para políticos, soldados ou guardas de trânsito?

Beleza pareceu pensar.

    • Nenhuma. Eles não perdem tempo com isso…

    • Pois é. Não é uma classe que se preocupa conosco. Estão sempre um passo a frente.

    • Você parece falar por enigmas.

    • É porque eu falo a verdade. Na maior parte das vezes nós não a entendemos.

    • Ah. Achei que eu é que era burra.

    • Não. Você é a garota que jogou um chinelo na minha cara….

(Beleza, sem graça:)

    • Mas foi sem querer.

    • Acertou em cheio!

    • Só o segundo. O primeiro eu errei de propósito.

    • Verdade?

Beleza Rara então começou a rir.

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Universidade Catedrática de Ciências Humanas

    • Dizem que seria possível criar uma empresa para encontrar o tempo perdido. Acha possível professor?

    • Isso parece campo de física, não filosofia. Mas acho que seria…

    • Tenho a curiosidade de saber como isso seria feito.

    • Bem, primeiro as pessoas teriam que ser simples e honestas. Acho que isso excluiria a mim a você, aos políticos e etc…

    • Uma área bem restrita não?

    • Claro. Como todos os bons investimentos esse denotaria um alto comprometimento pessoal de cada um. Seria necessário se envolver com cada cliente como se ele fosse único. Mostrar a ele o que ele viveu, o que poderia até aquele momento….

    • Lembrar? Ele lembraria do passado?

    • Simplista essa frase. Mais do que lembrar, sentir e entender. Então talvez uma das respostas fundamentais a existência humana poderia ser resolvida…

    • E qual seria professor?

Ele pigarreou e tomou um copo d’água

    • Como disse, é um campo da física. Talvez não seja eu o mais indicado.

O rapaz já ia se levantando.

    • Mas se eu soubesse como, não perderia tempo respondendo.

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O jardim era bonito e o frio parecia correr fora dele. Pleno inverno e não havia sequer um ventinho gélido junto aos canteiros.

Beleza Rara e Astronave se encontraram.

    • Dizem que amanhã vai ter festa.

    • É. Eu sei.

    • Mas só se a seleção ganhar. Senão eles vão e arrancam as bandeirinhas das ruas, cancelam os fogos e deixam as flores em paz.

    • Esta parte é legal.

    • Qual?

    • A das flores.

    • Ah. Nunca pensei que você aceitaria esse serviço.

    • Por que?

    • Sei lá. Parece perda de tempo.

Astronave ficou pensando um pouco.

    • Se for, que seja. Mas a vida é feita disso também. 

    • Percebe um paradoxo?

Astronave estava confuso. Normalmente o filosofo era ele.

    • Qual?

    • Encontrar tempo para perder?

Ele olhou e riu.

    • Você disse que amanhã é dia de jogo. 

    • Disse.

    • E o que quer fazer?

    • Comemorar.

    • Antes? Como eu fazia quando criança?

    • Você mesmo disse, outra forma é perder tempo.

Saíram abraçados, e ao sair do jardim o frio fez com que os dois se aconchegassem mais.

Nos canteiros rosas de três dias curtiam o último dia de primavera.

Queriam ganhar tempo antes de murcharem.

Beleza Rara e Astronave aceitaram o serviço porque não queriam perder tempo esperando a primavera voltar para ver aquele canteiro florido como estava.

E quem diria não ao pedido de uma rosa?

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Amauri de Paula

Belo Horizonte, 11 de Dezembro de 2005

Revisado em 23 de Setembro de 2006